domingo, 30 de junho de 2013

CELEBRAÇÃO






Tinham já passado oito dias, desde que tinha saído de casa numa direcção indefinida. Acabava de acordar num lugar que ainda não conhecia, porque estava escuro quando lá entrei a noite passada. Reparo agora que é uma construção enorme, e ocupada por outros como eu, mas de uma forma estranhamente organizada. Para todos eles parece falar uma voz, e vem de um senhor que é um colarinho. Tem botões nas suas roupas, que falam por ele, enquanto junta os dedos das duas mãos, numa qualquer celebração cantada, que ecoa pelas paredes que lhe seguram as costas. À volta dele, juntam-se pessoas que se conhecem entre elas ou, pelo menos, já se cruzaram uma vez que fosse num qualquer tropeção de atacadores. O mais certo é terem optado, num mesmo momento, ir na mesma direcção. Cantam todos a mesma canção do colarinho mas acrescentam, aqui e ali, uma toalha branca imaculada que esvoaça a partir das suas cabeças, e são constituídas por rendilhados que se vão acendendo à medida que as vozes vão sendo entoadas a partir dos cantos. Ninguém escolhe expor-se, e ocupam só as intersecções. O meio do espaço em que nos encontramos está vazio. Quase vazio, pois é utilizado por um deles. Foi um voluntário, que toca um piano rudimentar, elaborado com as melhores cordas de pesca ao anzol que se conhecem; oferenda de quem já se devia ter afogado, mas não teve essa sorte. Um sol desenhado por uma criança é levantado por canhotos, e não chega para aquecer o ambiente. Copos que precisam de duas mãos para serem elevados, saem de vestes com cores berrantes, transpiradas debaixo dos braços a que pertencem. Uma mancha de suor que vai aumentando de tamanho, quando a intervenção do grupo é subitamente abrandada. Surge uma voz que só é ouvida, porque mais nenhuma. É um colarinho mais desapertado, e fala para o fundo do espaço ocupado. Uma cena teatral mais do que subdividida, o modo como vira as páginas do livro donde certamente tira todas aquelas ideias que verbaliza. Vêm-se pescoços adornados com colares de materiais modestos; apenas uma jóia equilibrada a meio, e é uma caixa de fósforos meio preenchida, que é utilizada pontualmente, quando pretendem realçar uma qualquer palavra saída do colarinho, com um ritmo de percussão quase tribal. Percebo devoção em algumas daquelas pessoas, pois fazem demonstrações sem esperar retornos, em que pegam outros ao acaso, e elevam-nos à altura das suas cinturas, num aconchego de regaço maternal. Enquanto o fazem, desviam-se da música principal, e cantam mantras personalizados ao ouvido de quem acarinham. Parece servir para induzir um conforto sereno, onde só olhos piscam nas faces. As bocas estão escancaradas em silêncio, mas sem aparência de aflições. Projectam-se sombras chinesas num tamanho nunca antes visto, nem imaginado. Ocupam todo o tecto que é enorme, e quase parece um planetário alternativo, onde não existem estrelas nem planetas distantes, mas sim flores. Uma dança coordenada de membros, conjuntos inteiros de pernas em corpos, que utilizam alguns dedos dos pés mais habituados, e arrancam pétalas de malmequeres. Nunca chegamos a saber se são flores naturais ou de plástico, porque os bastidores de onde se desenrola a acção, são fortemente guardados com uma presença desproporcionada de seres musculados, quase o dobro dos outros. Nunca empregam a voz para impor a ordem. Utilizam para esse fim um conjunto de batutas harmoniosas, que ditam execuções de movimentos. Por detrás desta guarda de honra, existem mesas que se distribuem em diagonais perfeitas, e servem para mais de uma função. Têm o tamanho adequado para serem um palco individual, devidamente compartimentado por fitas largas coladas na sua superfície, e nelas desenrola-se a acção dos actores das projecções. As funções são duas, mas a pessoa é a mesma. São realmente pernas e dedos dos pés, que arrancam as pétalas dos malmequeres que vemos em sombras. Os membros continuam, como os conhecemos em qualquer corpo, mas adoptam uma posição excêntrica de um yoga pouco saudável para mim, pois as costas forçam as respectivas espinhas dorsais para a gravidade. Ficam com a cabeça apenas a alguns centímetros do solo, e com as mãos moldam estátuas de barro incompletas, só partes de corpos. É um trabalho a que se dedicam com um fervor espontâneo e contagiante. Pressinto um êxtase final, uma aproximação ao desfecho daquela actuação, e mais uma vez sou surpreendido. À minha frente, forma-se já uma fila com todos aqueles actores-artífices de braços estendidos. Querem oferecer-me as suas estátuas. Quando pergunto ao último da fila o propósito de tudo aquilo, é-me respondido:
São as partes todas das tuas preces!
Percebi então, que me devem ter ouvido a pensar e a dizer para mim mesmo, que me sentia incompleto. Louvados sejam.

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