Tinham
já passado oito dias, desde que tinha saído de casa numa direcção indefinida.
Acabava de acordar num lugar que ainda não conhecia, porque estava escuro
quando lá entrei a noite passada. Reparo agora que é uma construção enorme, e
ocupada por outros como eu, mas de uma forma estranhamente organizada. Para todos
eles parece falar uma voz, e vem de um senhor que é um colarinho. Tem botões
nas suas roupas, que falam por ele, enquanto junta os dedos das duas mãos, numa
qualquer celebração cantada, que ecoa pelas paredes que lhe seguram as costas. À
volta dele, juntam-se pessoas que se conhecem entre elas ou, pelo menos, já se
cruzaram uma vez que fosse num qualquer tropeção de atacadores. O mais certo é
terem optado, num mesmo momento, ir na mesma direcção. Cantam todos a mesma
canção do colarinho mas acrescentam, aqui e ali, uma toalha branca imaculada
que esvoaça a partir das suas cabeças, e são constituídas por rendilhados que
se vão acendendo à medida que as vozes vão sendo entoadas a partir dos cantos.
Ninguém escolhe expor-se, e ocupam só as intersecções. O meio do espaço em que
nos encontramos está vazio. Quase vazio, pois é utilizado por um deles. Foi um
voluntário, que toca um piano rudimentar, elaborado com as melhores cordas de
pesca ao anzol que se conhecem; oferenda de quem já se devia ter afogado, mas
não teve essa sorte. Um sol desenhado por uma criança é levantado por canhotos,
e não chega para aquecer o ambiente. Copos que precisam de duas mãos para serem
elevados, saem de vestes com cores berrantes, transpiradas debaixo dos braços a
que pertencem. Uma mancha de suor que vai aumentando de tamanho, quando a
intervenção do grupo é subitamente abrandada. Surge uma voz que só é ouvida,
porque mais nenhuma. É um colarinho mais desapertado, e fala para o fundo do
espaço ocupado. Uma cena teatral mais do que subdividida, o modo como vira as
páginas do livro donde certamente tira todas aquelas ideias que verbaliza.
Vêm-se pescoços adornados com colares de materiais modestos; apenas uma jóia
equilibrada a meio, e é uma caixa de fósforos meio preenchida, que é utilizada
pontualmente, quando pretendem realçar uma qualquer palavra saída do colarinho,
com um ritmo de percussão quase tribal. Percebo devoção em algumas daquelas
pessoas, pois fazem demonstrações sem esperar retornos, em que pegam outros ao
acaso, e elevam-nos à altura das suas cinturas, num aconchego de regaço
maternal. Enquanto o fazem, desviam-se da música principal, e cantam mantras
personalizados ao ouvido de quem acarinham. Parece servir para induzir um
conforto sereno, onde só olhos piscam nas faces. As bocas estão escancaradas em
silêncio, mas sem aparência de aflições. Projectam-se sombras chinesas num
tamanho nunca antes visto, nem imaginado. Ocupam todo o tecto que é enorme, e
quase parece um planetário alternativo, onde não existem estrelas nem planetas
distantes, mas sim flores. Uma dança coordenada de membros, conjuntos inteiros
de pernas em corpos, que utilizam alguns dedos dos pés mais habituados, e
arrancam pétalas de malmequeres. Nunca chegamos a saber se são flores naturais
ou de plástico, porque os bastidores de onde se desenrola a acção, são
fortemente guardados com uma presença desproporcionada de seres musculados,
quase o dobro dos outros. Nunca empregam a voz para impor a ordem. Utilizam
para esse fim um conjunto de batutas harmoniosas, que ditam execuções de
movimentos. Por detrás desta guarda de honra, existem mesas que se distribuem
em diagonais perfeitas, e servem para mais de uma função. Têm o tamanho
adequado para serem um palco individual, devidamente compartimentado por fitas
largas coladas na sua superfície, e nelas desenrola-se a acção dos actores das
projecções. As funções são duas, mas a pessoa é a mesma. São realmente pernas e
dedos dos pés, que arrancam as pétalas dos malmequeres que vemos em sombras. Os
membros continuam, como os conhecemos em qualquer corpo, mas adoptam uma
posição excêntrica de um yoga pouco
saudável para mim, pois as costas forçam as respectivas espinhas dorsais para a
gravidade. Ficam com a cabeça apenas a alguns centímetros do solo, e com as
mãos moldam estátuas de barro incompletas, só partes de corpos. É um trabalho a
que se dedicam com um fervor espontâneo e contagiante. Pressinto um êxtase
final, uma aproximação ao desfecho daquela actuação, e mais uma vez sou
surpreendido. À minha frente, forma-se já uma fila com todos aqueles actores-artífices
de braços estendidos. Querem oferecer-me as suas estátuas. Quando pergunto ao
último da fila o propósito de tudo aquilo, é-me respondido:
– São as partes todas das tuas preces!
Percebi
então, que me devem ter ouvido a pensar e a dizer para mim mesmo, que me sentia
incompleto. Louvados sejam.
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