terça-feira, 3 de setembro de 2013

CAPUCHINHO VERMELHO







Inicio a caminhada em Cacilhas, de braço dado com o Tejo. É um caminho antigo, incrustado de escamas de peixes também antigos, já sem cheiro. Percorro-o, até deixar de ouvir vozes atrás de mim. Paro, para me sentar. Perto de mim está um cão deitado, que me olha a partir do mesmo chão. O cão tem duas atenções, olhar-me e respirar. Pelo mesmo caminho, e da mesma direcção, vem um homem sozinho quase a chegar à minha sombra. O cão, à queima-roupa, levanta as orelhas juntamente com a cabeça. Por pouco tempo, até depois do homem dizer-me boa tarde. Distracções. O cão guarda a mobília de terraço de uma família. São duas cadeiras de plástico, e fazem-lhe companhia. Antes só. As cadeiras, vazias, estão de costas voltadas para o rio. Apercebo-me de movimentos. Por detrás da sonolência do cão, surgem duas crianças. Penso que sejam da mesma família da mobília. Brincam com o vento, atirando-lhe nomes, para serem devolvidos noutras vozes. O cão desapareceu, assim como uma das crianças. A que ficou olha para o umbigo, levantando para isso as suas roupas. Agora também essa desapareceu. Abandonadas por todos de casa, as cadeiras ficam. Ignoram o rio, e qualquer tipo de movimento incluindo o delas. São dependentes de pessoas. No caminho antigo, junto ao rio e em frente às cadeiras, existe uma porta. Aberta e irrequieta. Brinca também com o vento, facilitando a cantiga de vaivém das crianças. Ouço-lhes novamente a melodia, vinda do outro lado da parede onde está a porta. Uma parede espessa e antiga. Tão antiga como o caminho antigo. Mais antiga que a canção das crianças. Sobreviveu à casa de que fazia parte, sendo hoje uma fachada numa idade avançada. Uma velhice partilhada com a encosta onde está plantada, que lhe dá só meio-dia de luz, para que não se canse. Como se cansaram as traves, outrora mestras, que se depositam como cinzas aos seus pés. Não é chão. Da encosta, saem também sombras e ruínas de um sanatório. Este, com as paredes todas inteiras, onde fazem ricochete os gritos dos loucos, abandonados à sua espuma, que escorre para o rio a partir das suas bocas abertas para a ausência de palavras. Estes loucos, chamam com as suas mãos quem passa. E quase não passa ninguém. Eu e um homem passámos. Eu fiquei, a contar a estória deles em poucas palavras. E a estória das crianças. Como uma troca justa, pela simpatia com que me recebem, como um corpo não estranho, antigo como a paisagem deles. O meu monstro interior, equacionado tantas vezes, é resolvido com uma mão pequena no ombro e um sorriso quase sem dentes. As crianças pressentem os lobos, mas não lhes têm medo. Coincidências. Ainda à pouco, poucos minutos, as crianças perderam a vergonha que nunca tiveram dos outros, estranhos e familiares, e vieram até junto de mim. Eu continuava sentado no chão, a olhar para os pés, com o rio à minha frente. Sinto-o. Vieram até mim, mas não trouxeram o cão. Deixaram-no atrás da parede que é só fachada, e à vista dos loucos lá em cima na encosta. Tenho uma criança em cada ombro, escolhido por elas mesmas sem zangas para ver quem ficava com o esquerdo. Sorridentes, simpatizam e cobram. Perguntaram primeiro o que estava eu a fazer. Disse-lhes que pensava em estórias. Que engraçado, disseram. Perguntaram depois, se eu lhes poderia contar uma estória. Eu respondi que pensava em estórias, mas que não me lembrava agora de nenhuma para lhes contar.
Pode ser a do Capuchinho Vermelho? Perguntaram por último.

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