No primeiro andar de um prédio vive um menino. Dorme na
varanda, à vista de todos. A manhã acontece agora, e a paisagem começa a modificar-se
com o movimento das pessoas. O menino acabou de acordar. Talvez sonhasse com
sandálias apertadas, um tamanho abaixo do seu sorriso de criança. Limpa as
remelas com o dedo indicador, molhado com cuspe na sua boca ensonada.
Levanta-se e dá dois passos. Baixa-se. Levanta uma bicicleta do chão. Que pode
muito bem ter-lhe servido de almofada durante o sono. Não sei se a noite toda. Não
a quer montar. Segura-a pelos punhos e caminha lado a lado. Quase parece uma
bicicleta desobediente, a fazer uma birra, não deixando domar os seus
cavalinhos. A mãe do menino aparece à janela, e grita às rodas da bicicleta.
Não adianta, a bicicleta é selvagem e não são as mães dos outros que a vão acalmar. O menino, impaciente, desiste e encosta a bicicleta às grades da
varanda. Corre agora sozinho, e abre a boca. Mas não grita, cai. Levanta-se num
gesto rápido, e olha para a rua em todas as direcções, como se tivesse receio
que alguém destapasse com o olhar os seus joelhos esfolados. Dirige-se para a
bicicleta, e pega nela. Atira com ela para um canto da varanda, à sombra.
Imagino que seja um canto, e que a varanda tenha um fim. Não o vejo daqui. O
menino encosta-se às grades da varanda. Parece longe, em pensamentos de
brincadeiras. De repente, começa a expulsar coisas imaginárias para fora da
varanda, na direcção da estrada movimentada que passa junto ao prédio. Passa um
cão na rua. O menino faz uma pausa no seu silêncio e grita para o cão, ao mesmo
tempo que agarra, ameaçadoramente, um pau de vassoura que se encontrava caído
no chão da varanda. Vira as costas à rua, levando o pau pela mão, e dirige-se
para a mesma janela onde a sua mãe morou há pouco. Mete a cabeça e pede água. A
mãe não vem à janela, contornando a casa por outro caminho, e aparece na
varanda com as mãos na cintura. Parece zangada. Sem aviso prévio, falado ou
gesticulado, dá uma bofetada no menino. Depois, caminha para o canto invisível da
varanda. Visto daqui. Demora-se pouco, e trás agora com ela a bicicleta.
Encosta-a à parede com sol, e pega na mão do menino. Vão para dentro. No
primeiro andar de um prédio.
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