segunda-feira, 23 de setembro de 2013

CRIA II



Ouço-lhe o choro, e vem tarde. É a sua mágoa com o tempo que está atrasado, para ser vida. É urgente, pois quer sentir o que lhe está à volta. Abrir os olhos, e ver animais longínquos, parados à sua frente, prontos para rugir ao seu primeiro movimento. Dela. Os olhos abrem, e a selva acorda. Nasce tudo o que é vivo, e é para ela. E como é urgente. A vida é urgente, tem sempre pressa. Das almas atrasadas, e ela não se quer atrasar. Depois do choro, senta-se. Aponta. Aponta tudo, como que a indicar a direcção da vida urgente, em tudo o que está parado. E é tudo que espera por ela, maestrina de todos e mais alguns. Antes do movimento urgente, é o silêncio que cose os corpos a esses animais, perto dela. Não se atrevem eles ao movimento antes do tempo, à ordem que virá. Dela. Instáveis, não lhe querem causar o dano do incómodo, porque ainda é tão cedo para tudo. Para a vida urgente não, pois esta tem pressa. Aponta agora esta cria para todos, e de todos sabe o nome. Só nós, os mais crescidos nos anos, é que não entendemos. Os animais esperam. Esperam todos. Esperam que a cria esteja confortável. Confortável nesta posição sentada de cria, maior que todos os outros, adultos no seu boneco. Ela, cria, soberana dos corações insones, amolecidos pela sua mágoa de querer viver muito e agora. Á volta dela, existe uma vedação. Mas é curta, uma paliçada baixa, que de pouco ou nada serve para lhe conter o gesto rápido. Não salta dali porque não quer. Porque tem mais direcções, mais vida, para apontar com os seus pequenos dedos. Cabe neste corpo recente, o tempo todo que terá de existir, mais a mágoa da sua pressa. E não chega sequer a ser um choro. É uma ladainha na língua original, que todos os adultos esqueceram, aquando das primeiras recordações que têm de si mesmos. É uma linguagem transitória, do crescimento tornado esquecimento. A vida, essa, recomeça aqui todos os dias, a tempo da primeira luz apagada dos candeeiros da rua. À cria, sinto-a sempre tão perto mesmo quando penso que durmo. Pois está demasiado perto da minha cave escura, e já não faço um esforço que seja para me afastar. É só um corredor, o que me separa do seu coração hábil de cria, e lá fora na rua há já quem esteja à espera dela. Também a árvore enorme que habita na terra em frente, e que nos bate à janela todas as manhãs, nervosa também ela, por querer entregar-lhe o primeiro canto dos seus pássaros. Para que seja este canto a música que falta, a esta pequena maestrina. Ela escuta, a partir da sua posição sentada, confortável. E escuta por agora só isto, que a cidade não é aqui é mais afastada, e sinto-lhe o pulso fraco. Os primeiros passos nas calçadas irregulares fazem-se decerto ouvir, mas não é aqui. Este é um lugar de vida também com pressa, mas falada numa língua que não conheço, traduzida devagar para o meu coração pronto para o pão torrado. Esperam. Esperam todos. Esperam pelo compasso urgente, no início de mais um dia, e não sou eu que vou atrapalhar o acto. Sirvo-a, e sirvo-lhe à justa. Presto-lhe a facilidade da locomoção, no meu tamanho de colo adequado, para os sítios onde a vida se encontra. Aqui perto, mais longe, e em todos os lugares apressados. O meu colo é dela, num equilíbrio humilde, que tenta não oscilar mais do que o possível. Ela chora. A cria às vezes chora, e aponta. Aponta tudo, e tudo parece estar à espera que ela aponte. Até as paredes se animam, nessa brincadeira sem fim com as suas sombras, afagando-lhe o cabelo farto, encaracolado a partir das raízes da árvore enorme à nossa janela. Afagam-lhe o cabelo com o seu estuque macio. A direcção a tomar, para onde as minhas pernas me levam com ela no meu colo todos os dias, eu já adivinho. A velocidade é sempre a da pressa, porque é urgente. A rua é urgente, com os automóveis e as vozes paradas à espera dos desconhecidos. Todos estão parados, esperam. Esperam a sua passagem, para que a música suburbana comece. As formigas, ordenadas nos caminhos dessa rua, ajudam-me a caminhar, quase correndo o risco de serem pisadas. Não se parecem importar. O caminho da vida que ajudam a apontar, é-lhes mais importante que o próximo inverno, e deixam para trás os seus haveres no leito dos caminhos para onde vou. Com o meu colo preenchido com a música que já começou, urgente como a vida para onde aponta. E esta cria aponta tudo, porque não há tempo para se atrasar. É urgente. É urgente ter pressa, pois o dia não quer esperar e tem já as luvas do ar fresco colocadas, para que ela, cria, respire melhor. Ela está aqui, no final dos meus braços, e vem a cantar. Este dia já começou há muito para ela, e nunca é cedo para a sua pressa. Chega bem.

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