terça-feira, 2 de julho de 2013

OBSERVAÇÕES


Maldita miopia, esta que me anula aos poucos. Actuo perante ela como alguém que tem uma mania, um entretém, pois passo a vida a limpar lentes com cuspo e a esfregar os olhos até à nuvem. Mesmo assim, não me conformo. E procuro respostas nas imagens que me são devolvidas na volta do correio, e que não deixo acumular. Fico à espera delas todos os dias à mesma hora, mais hora menos hora. São imagens com um brilho próprio e sem vestígios de pêlos ou dos pedaços de desperdício de oficina que uso para limpar os meus óculos. Imaculadas e sem impressões digitais, novas de impressão. Cuidam bem delas antes de mim. Fazem-me ver, se não já coisas perfeitamente definidas, umas manchas que já não estranho, e que classifico como o meu tangível. Ou possível. Guardo esta realidade só para mim, e nem me preocupo em perguntar aos meus amigos o que vêem eles. – Vejam lá!
Olho e podem ser setas a indicar presidentes contra qualquer coisa. Admiro jornais semi-impressos, em que as letras vão aparecendo à medida das tragédias que acontecem ou que podem vir a acontecer a qualquer momento. Observo cartazes preenchidos com o primeiro nome igual em todos: psi-20, psicose, psi-trance, psi to bar, psicotrópicos de onde vêm bananas, psiquiatras sem mesas atribuídas e muito menos impressoras, que escrevem já nos braços dos pacientes para não se esquecerem da medicação a tomar e inscrevem-se em free qualquer coisa. Assisto a propostas teatrais frescas de antanho, com actores que já não são humanos mas sim marionetas elaboradas com garrafas PET, reaproveitadas para não aumentarem o seu país no meio do oceano Pacífico. Presencio situações em minas donde já não são extraídos elementos preciosos e cotados na bolsa, e que são agora locais onde funcionam terapias de grupo com picaretas na mão, que servem para arrancar pepitas de analgésicos previamente lá colocadas por míopes como eu, que assim as colocam ao acaso da sua cegueira. Existem também nessas minas, espaços de conforto que são beliches escavados na rocha, protegidos com grades metálicas, onde são despejados pela polícia dos costumes, números ainda não contabilizados de pensadores livres e vítimas de violência doméstica, todos misturados e são muitos. Contemplo museus de bonecos de cera que se mexem bem e têm assentos para sempre em mesas redondas de brainstormings formidáveis, que nunca levam a lugar algum, é só convívio. Grandes ideias debaixo de candeeiros apagados indeterminadamente por amigos falsos do ambiente. Reparo em laranjas que são apanhadas certas à meia dúzia, por animais treinados em design de embalagens. Aprecio lenços incombustíveis ao pescoço de fumadores inveterados, em tertúlias de isqueiros acesos todos ao mesmo tempo. Também malas a tiracolo, em ombros em carne viva pela correria na grande cidade, e mandadas parar por polícias sinaleiros que insistem em existir, apesar de já extintos como dinossauros, com luvas calçadas de um branco que não o tecido, mas do sémen atirado pelas janelas dos veículos conduzidos por desempregados do comércio local.  Testemunho o carinho das formusuras em corpos de cento e cinquenta quilos, bem distribuídos por vestidos com tecidos de padrão a imitar animais empalados. Outros têm mãos, bem tratadas, que arrancam os brincos das próprias orelhas mal lavadas por opção. Colaboro à distância com grupos de cidadãos convocados no próprio momento, nos coretos das vilas perto do interior omitido. Depois de se encontrarem, vão todos juntos para um armazém vendido em hasta pública, ocupado no seu interior por uma teia de estruturas de andaime que aguentam a sua cobertura pesada. Realizam depois acções espontâneas, onde se organizam por debaixo dessas estruturas e as abanam com uma calorosa entrega corporal, esperando que cedam a qualquer momento, como num jogo de roleta russa. Vejo pastilhas para o catarro a serem vendidas em balcões onde é expressamente proibido fumar, e preçários intermitentemente iluminados, pendurados às costas dos funcionários, que não deixam sequer adivinhar qual o preço certo. Aponto para garrafas com líquidos de alto teor alcoólico proibidos na Constituição fundadora, ao lado de tisanas a imitar chá de países longínquos. Passam pelos meus olhos, elefantes amestrados que guardam vitrinas blindadas que exibem notas de um milhão. Notícias de carrinhos de supermercado vazios com luzes de emergência accionadas, tresloucados em cerimoniais de entregas de sacos de arroz num pinhal perto de uma praia da nossa costa. Às vezes, surgem relatos de casais que se entendem, como último recurso, através de linguagem gestual aprendida em motores de busca lentos na internet. A ver vamos, e são portas de um ministério, ladeadas por vendedores de algodão doce, que servem como comitiva de boas vindas a empresários estrangeiros. No interior desse edifício emblemático quase a ruir, procede-se a tomadas de posse modernas, onde se juntam todos os intervenientes, e lhes são atribuídas bolas de ténis autografadas por atletas nacionais na reforma, para serem lançadas a vasos tamanho XL de dinastias antigas e mais que enterradas. Passam ao mesmo tempo no céu por cima, aviões que deviam estar a apagar fogos em algum lado que desconheço, com faixas publicitárias de oposições a acusar de falta de credibilidade os seus oponentes. Última esfregadela de olho por agora, e são só notas de rodapé exibidas na televisão com a indicação de números de telefone de linhas de valor acrescentado para suicídio assistido, noticiadas por vozes sensuais de travestis maravilhosos, imagino eu. Já só vejo o final, pois passaram sem repetição, e não os consegui anotar nem memorizar. Merda para estas lentes.
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