domingo, 14 de julho de 2013

A BESTA



A besta tem ocupações mansas. Vê coisas com sentido crítico, e consegue virar páginas de um qualquer jornal perdido no seu mundo. Frequentemente respira de uma forma simples, em que o ar da vida entra e volta a sair, sem grandes entraves que não sejam os ossos cruzados no interior do seu dorso. A velocidade de umas patas constantes é desacelerada por momentos frugais. Espelhos em que se mira, na água das poças da chuva, e onde as suas borbulhas são admiradas à escala de uma garra afiada. Como todos os selvagens que não o querem ser, tem uma zona sem pêlos no seu corpo, aparados com uma paciência frequente, permitindo-lhe saber o que é uma pele macia. Uma aniquilação temporária da sua voragem, bombeada pelo seu coração de besta. É o controlo possível que faz de si mesmo, que não depende da sua vontade, mas sim da chama da alma positiva, acendida pelos ventos originários do grande descampado ainda existente. É raro, mas isto nem sempre acontece. Por vezes, esse fósforo vital para o equilíbrio, fica preso na copa das árvores, e percebe-se o começo de uma noite, da qual não se adivinha o fim. Noite iluminada por esses abutres pirotécnicos, que se alimentam dos fósforos esquecidos. A besta fica assim presa por correntes insuficientes, e incapazes de segurar as articulações que prendem as suas facas amoladas. Estas são garras que fazem do seu próprio corpo a primeira vítima, e ferem-na, abrindo buracos profundos, no coração que diminui de tamanho em cada golpe. Os pêlos voltam a crescer na clareira outrora macia, e é já uma espuma biliar o que lhe sai pela boca, deixando a linguagem calma presa na garganta. Não se sabe quando se soltará outra vez; nunca se sabe. Um uivo demente, que ouve dentro do seu corpo silencioso, e se decompõe em matéria bruta. Sente que é uma violência básica, esta que lhe cobre a superfície como um manto castanho esverdeado, cozido entre os pedaços da carne roubada aos outros como ela. É a mãe da noite, uma lua cheia aqui tão perto, que a beija com esperança, ao mesmo tempo que aponta com um dos seus braços de luz prateados, um corpo pequeno de cria inocente. Esta sorri com os olhos, e a besta percebe que é a sua, sempre foi. Vem do tempo macio, sem pêlos, antes da raiva. Caminha agora para ela, tomando-lhe o mesmo tamanho e fica, com a sua boca, próxima daqueles olhos sorridentes. Limpa a sua espuma com a terra do chão, e percebe, que o que os une são lâminas curtas e essa pele macia que num é original, e no outro é aparada por necessidade. Um instinto.

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