A
besta tem ocupações mansas. Vê coisas com sentido crítico, e consegue virar
páginas de um qualquer jornal perdido no seu mundo. Frequentemente respira de
uma forma simples, em que o ar da vida entra e volta a sair, sem grandes
entraves que não sejam os ossos cruzados no interior do seu dorso. A velocidade
de umas patas constantes é desacelerada por momentos frugais. Espelhos em que
se mira, na água das poças da chuva, e onde as suas borbulhas são admiradas à
escala de uma garra afiada. Como todos os selvagens que não o querem ser, tem
uma zona sem pêlos no seu corpo, aparados com uma paciência frequente,
permitindo-lhe saber o que é uma pele macia. Uma aniquilação temporária da sua
voragem, bombeada pelo seu coração de besta. É o controlo possível que faz de
si mesmo, que não depende da sua vontade, mas sim da chama da alma positiva, acendida
pelos ventos originários do grande descampado ainda existente. É raro, mas isto
nem sempre acontece. Por vezes, esse fósforo vital para o equilíbrio, fica
preso na copa das árvores, e percebe-se o começo de uma noite, da qual não se
adivinha o fim. Noite iluminada por esses abutres pirotécnicos, que se
alimentam dos fósforos esquecidos. A besta fica assim presa por correntes insuficientes,
e incapazes de segurar as articulações que prendem as suas facas amoladas. Estas
são garras que fazem do seu próprio corpo a primeira vítima, e ferem-na,
abrindo buracos profundos, no coração que diminui de tamanho em cada golpe. Os
pêlos voltam a crescer na clareira outrora macia, e é já uma espuma biliar o que
lhe sai pela boca, deixando a linguagem calma presa na garganta. Não se sabe
quando se soltará outra vez; nunca se sabe. Um uivo demente, que ouve dentro do
seu corpo silencioso, e se decompõe em matéria bruta. Sente que é uma violência
básica, esta que lhe cobre a superfície como um manto castanho esverdeado,
cozido entre os pedaços da carne roubada aos outros como ela. É a mãe
da noite, uma lua cheia aqui tão perto, que a beija com esperança, ao mesmo
tempo que aponta com um dos seus braços de luz prateados, um corpo pequeno de
cria inocente. Esta sorri com os olhos, e a besta percebe que é a sua, sempre
foi. Vem do tempo macio, sem pêlos, antes da raiva. Caminha agora para ela,
tomando-lhe o mesmo tamanho e fica, com a sua boca, próxima daqueles olhos
sorridentes. Limpa a sua espuma com a terra do chão, e percebe, que o que os
une são lâminas curtas e essa pele macia que num é original, e no outro é
aparada por necessidade. Um instinto.
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