quarta-feira, 10 de julho de 2013

JOGO DE CARTAS






Um jardim que é como os outros, com folhas soltas que se despedem dos seus lares. Lá existem árvores tristes com a vida dos humanos, que passam por elas, sem contar com os ramos. Estes humanos – são homens que passam – olham a vida por baixo das suas raízes, e são conduzidos por relógios sem pilha, parados numa hora conveniente. Salvam-se as crianças por agora, em bolas lançadas para a estrada movimentada que lhes passa ao lado. Quase sempre chegam ao passeio contrário, sem o estrondo de uma vida acabada. Pagam essas bolas preços altos, por serem os olhos das crianças. Vão rasteiras sob carroçarias infernais e veios da transmissão de responsabilidade que é crescer. Neste jardim, há também um homem diferente, que tem outro relógio; é de corda, e já passaram muitas noites desde que ficou esquecido no seu bolso. É um autista tardio – e chegou depois da lei seca – imposta pelo acaso das coisas que se intuem ser as correctas. Uma pessoa ainda boa, no fundo do seu poço. Uma lâmina de água é o bastante, para que o rosto seja devolvido com um brilho perdido nos olhos; a esperança de um meio líquido onde se possa respirar. Este homem é uma continuação do seu relógio parado, e faz por ele os movimentos certos. Passa o dia todo encostado sempre à mesma árvore – que o apadrinhou como mais um pássaro – e acompanha um jogo de cartas que é sempre do mesmo naipe. É uma paciência de velhos, e trazem todos eles as suas cartas de casa. Um baralho quase todo, menos uma figura da sua rainha.
Ela fez renúncia.

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