terça-feira, 30 de julho de 2013

A TRELA DO CÃO




Esta é a história de um cão amável. Tem uma cara de rebuçado, e é doce o seu sorriso de dentes de leite, ainda mal cariados de carnes mal roídas. É educado sem nunca ter tido uma lição. Poderá dizer-se que é um instinto o que lhe molda a atitude; o saber estar deitado aos pés de uma mesa de café, a cheirar o cú dos outros como ele, ou ainda aceitar quieto o que lhe queiram dar para a boca. O mundo dele, cão, tem um metro e meio em linha recta, e é feito de uma corda, frouxamente segura por um dono triste. Não lhe chegam a cair lágrimas, mas está sempre a olhar para o relógio, como se o que espera para ele, estivesse de alguma forma reflectido naquele vidro do tempo, traduzindo as voltas dos ponteiros por imagens de mãos sem trelas e sons baixos de latidos. Pois aquele mundo de corda à sua responsabilidade, é também a sua prisão. É visível a continuação do entrançado de fios nos seus braços, cinzentos do ar poluído por todos os escapes das máquinas que o atormentam, quando o cão não ladra. Entranha-se até às suas veias sem cor, esta ração de combate perdido. É uma vergonha que não esconde de ninguém, usando uma camisa de manga-curta, estampada com anúncios de cães abandonados pelos seus donos. De vez em quando, consulta uma parte desse tecido que lhe cobre parte do corpo, e aponta números no seu telemóvel. Alguém, de repente, telefona-lhe e percebe-se que é uma conversa de lembrança. Para que tenha cuidado na escolha do caminho da higiene diária do seu estimado. O cão, como que a adivinhar que a conversa lhe diz respeito, faz um sinal quase imperceptível ao seu dono. E este, do alto do seu fardo, olha à sua volta como que a pedir uma redução da sua pena, e levanta-se resignado. Vejo os dois a afastarem-se, levando com eles o seu mundo. É pequeno.

Sem comentários:

Enviar um comentário