Esta
é a história de um cão amável. Tem uma cara de rebuçado, e é doce o seu sorriso
de dentes de leite, ainda mal cariados de carnes mal roídas. É educado sem
nunca ter tido uma lição. Poderá dizer-se que é um instinto o que lhe molda a
atitude; o saber estar deitado aos pés de uma mesa de café, a cheirar o cú dos
outros como ele, ou ainda aceitar quieto o que lhe queiram dar para a boca. O
mundo dele, cão, tem um metro e meio em linha recta, e é feito de uma corda, frouxamente
segura por um dono triste. Não lhe chegam a cair lágrimas, mas está sempre a
olhar para o relógio, como se o que espera para ele, estivesse de alguma forma
reflectido naquele vidro do tempo, traduzindo as voltas dos ponteiros por
imagens de mãos sem trelas e sons baixos de latidos. Pois aquele mundo de corda
à sua responsabilidade, é também a sua prisão. É visível a continuação do
entrançado de fios nos seus braços, cinzentos do ar poluído por todos os
escapes das máquinas que o atormentam, quando o cão não ladra. Entranha-se até
às suas veias sem cor, esta ração de combate perdido. É uma vergonha que não
esconde de ninguém, usando uma camisa de manga-curta, estampada com anúncios de
cães abandonados pelos seus donos. De vez em quando, consulta uma parte desse
tecido que lhe cobre parte do corpo, e aponta números no seu telemóvel. Alguém,
de repente, telefona-lhe e percebe-se que é uma conversa de lembrança. Para que
tenha cuidado na escolha do caminho da higiene diária do seu estimado. O cão,
como que a adivinhar que a conversa lhe diz respeito, faz um sinal quase imperceptível
ao seu dono. E este, do alto do seu fardo, olha à sua volta como que a pedir
uma redução da sua pena, e levanta-se resignado. Vejo os dois a afastarem-se,
levando com eles o seu mundo. É pequeno.
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